A ilegitimidade da irrecorribilidade das decisões interlocutórias no estado democrático de direito

13/07/2011

Por Johnny Soares de Oliveira

Antes de atingirmos a abordagem pretendida, necessário se faz conceituar o Estado Democrático de Direito, que é resultado de um processo histórico constitucional. Dispensando a conceituação do Estado Liberal e do Estado Social de Direito, devemos pontuar a observação de José Afonso da Silva:

A configuração do Estado Democrático de Direito não significa unir formalmente os conceitos de Estado Democrático e Estado de Direito. Consiste na verdade na criação de um novo conceito, que leva em conta os conceitos dos elementos componentes, mas os supera na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo.(SILVA, 2004, p.119)

E é com este componente revolucionário que o Estado Democrático de Direito torna-se uma opção para solucionar os problemas vividos anteriormente. Nesta senda, melhor elucida Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, citado por Vinicius Lott Thibau:

No esteio dos novos movimentos sociais, tais como o estudantil de 1968, o pacifista, o ecologista e os de luta pelos direitos das minorias, além dos movimentos contra-culturais, que passam a eclodir a partir da segunda metade da década de 60, a 'nova esquerda', a chamada esquerda não eslinista, a partir de duras criticas tanto ao Estado de Bem-Estar - denunciando os limites e o alcance das políticas publicas, as contradições entre capitalismo e democracia -, cunha a expressão Estado Democrático de Direito. O Estado Democrático de Direito passa configurar uma alternativa de superação tanto do estado de Bem-Estar quanto do Estado de socialismos real. (DE OLIVEIRA,1998, apud THIBAU, 2011, p.19)

É com base nesses contornos históricos sobre Estado Democrático de Direito que, em suma, podemos defini-lo como aquele que assegura a participação mais ampla possível dos cidadãos no processo político decisório. E, neste contexto, o Estado Democrático de Direito foi consagrado pela Constituição Federal do Brasil de 1988 em seu artigo inaugural.

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:(BRASIL, 1988)

Destaca-se que, na legislação infraconstitucional, a roupagem conferida pela lei 9.099/95 ao procedimento do Juizado Especial, que tem em seu bojo preceito de contorno constitucional, figura como instrumento de desburocratização do acesso à prestação jurisdicional, possibilitando a sua democratização, com a participação ativa daqueles a quem se dirige a tutela jurisdicional de um Estado Democrático de Direito.


No entanto, a restrição ao direito de recorrer das decisões interlocutórias proferidas no procedimento sumaríssimo cível fere flagrantemente a função fiscalizadora do recurso dentro do Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido, com propriedade, sintetiza Menelick de Carvalho Netto:

Desse modo, no paradigma do Estado Democrático de Direito, é de se requerer do Judiciário que tome decisões que, ao retrabalharem construtivamente os princípios e regras constitutivos do Direito vigente, satisfaçam, a um só tempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença tanto na legalidade, entendida como segurança jurídica, como certeza do Direito, quanto ao sentimento de justiça realizada, que deflui da adequabilidade da decisão às particularidades do caso concreto (CARVALHO NETTO, 2004, p.38)

Evidentemente, constamos que o Estado de Democrático de Direito difere dos paradigmas dos Estados que antecederam face a os seus princípios que valorizam a influencia dos cidadãos sob os atos da jurisdição estatal, com a finalidade de corrigir possíveis defeitos à legalidade e legitimidade dos mesmos.

Neste sentido, é a lição de Vinicius Lott Thibau:

(...) o Estado Democrático de Direito visa corrigir as distorções concernentes à legitimidade do Direito havidas nos paradigmas jurídico constitucionais do Estado Liberal e do Estado Social, uma vez que esses paradigmas cingem-se a disputar a hegemonia na 'determinação dos pressupostos fáticos para o status de pessoas do direito e seu papel de destinatárias da ordem jurídica'(THIBAU, 2008, p.340)

Portanto, em uma sociedade complexa, os cidadãos que a integram devem ter garantidos os direitos de fiscalização e de participação na elaboração do seu ordenamento jurídico e das decisões cujos efeitos sofrerão. E, assim se considerando, compreendemos que, no Estado Democrático de Direito, o recurso detém uma atribuição fundamental no que concerne à fiscalização das decisões judiciais, visando futuras reformas ou invalidação decisória em casos de equivoco na aplicação do direito.


Entretanto, como é sabido, a lei n.° 9.099/95 não traz, em seu texto normativo, qualquer possibilidade de impugnar decisões interlocutórias no primeiro grau de jurisdição, sendo de se registrar, ainda, a inadmissibilidade expressa da aplicação do Código de Processo Civil, mesmo que de forma supletiva. 


É neste fundamento que a jurisprudência se baseia para não permitir a interposição dos recursos de agravo retido ou de instrumento contra as decisões interlocutórias proferidas no âmbito do Juizado Especial Cível Estadual, ficando os cidadãos à mercê das decisões proferidas.


Certo é que a sociedade tem exigido, no Brasil, uma jurisdição mais célere na solução dos conflitos; porém, não pode o princípio da celeridade processual sacrificar direitos e outros princípios constitucionais, conforme entendimento de Lutiana Nacur Lorentz:
A cada dia, a sociedade reclama mais celeridade da jurisdição, Entretanto, não se pode, a pretexto de aumentar a celeridade dos processos, de nenhuma forma, admitir-se que sejam sacrificados nem os institutos da isonomia, nem da ampla defesa, nem do contraditório. (LORENTZ, 2001, p.34)

Neste sentido, bem assevera Bruno Pereira Costa:

Nesta senda, considerando-se que é inevitável que no deslinde da demanda advenham incidentes que clamam ao julgador que sobre eles profira decisão, é inquestionável a possibilidade de ocorrência de situações em que o decisium se mostre abusivo ou ilegal, e, consequentemente, passível de causar dano irreparável a direito líquido e certo da parte prejudicada. Deste modo, ressalte-se que em tais episódios não se pode admitir a prevalência do ato praticado sob o argumento de prejudicialidade à celeridade processual, o que levaria ao desvio da finalidade primeira da jurisdição, e ao império da própria injustiça.(COSTA, 2010)

Como se não bastasse a vedação ao direito de recorrer das decisões interlocutórias, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do recurso extraordinário no. 576.847, manifestou entendimento de que não é cabível o mandado de segurança contra as decisões interlocutórias exaradas no procedimento do Juizado Especial Cível Estadual.

Sabe-se, entretanto, que o mandado de segurança é uma ação constitucional que visa a proteção de direitos líquidos e certos contra atos ilegais e abusivos provocado por autoridades, estando previsto, atualmente, no art. 5º, inciso LXIX da Carta Magna e, também, na lei 12.016/2009. Conforme melhor define Deocleciano Torrieri Guimarães, é:
Remédio ou garantia constitucional de que dispõe a pessoa física ou jurídica, órgão com capacidade processual ou universalidade que a lei reconhece, para proteção de direito individual líquido e certo, não amparado por habeas-corpus ou habeas-data, que tenha sido lesado ou esteja na iminência de o ser, por autoridade de qualquer categoria ou função, responsável pela ilegalidade ou abuso de poder. Criação do Direito Brasileiro, o mandado de segurança toma forma na C.F. de 1934 e permanece nas que a seguiram, até a atual. (GUIMARÃES, 2004, p.393)

Na referida decisão do STF, contudo, a despeito da legislação e doutrina, ficou consagrada a irrecorribilidade das decisões interlocutórias em sede do Juizado Especial Cível, bem como a inadmissibilidade da impetração do mandado de segurança no procedimento ali legalmente previsto, sob o argumento de que a escolha pelo procedimento sumaríssimo é uma faculdade da parte que, em face de prévia orientação, deve aceitar as vantagens e as limitações que lhes são inerentes. Sobre o supracitado remédio constitucional, afirmou que o prazo para impetrá-lo não se coaduna com a finalidade do Juizado Especial Cível.

Assim o fazendo, porém, o STF deixa de considerar e valorizar as garantias do contraditório, da ampla defesa e da isonomia, que permitem o exercício do direito constitucional ao recurso como forma de garantir um espaço de participação, de fiscalização e de influência das partes no desenvolvimento da atividade processual.


Nas palavras de Vinicius Lott Thibau, iremos melhor compreender tal posicionamento:

Desde a adoção do paradigma jurídico-constitucional do Estado Democrático de Direito, em 1988, torna-se necessária a oferta, pelo Ordenamento Jurídico brasileiro, dos direitos de participação e de fiscalização incessantes, intersubjetivas e isentas de coerção àqueles que, sendo destinatários das decisões no âmbito da produção e da aplicação do Direito, devem, igualmente, se reconhecer como seus coautores, caso se pretenda afastar os déficits do Estado Liberal e do Estado Social. (THIBAU, 2011, p.103)

É com base nos referidos direitos de participação e de fiscalização que entendemos dever ser declarada a ilegitimidade da irrecorribilidade das decisões interlocutórias proferidas no âmbito do Juizado Especial Cível Estadual, por contrariar os fundamentos do Estado Democrático de Direito.